Li recentemente uma entrevista que o talentoso desenhista Ofeliano deu a José Carlos Neves, publicada no site que o entrevistador mantém, o Alan Moore – Senhor do Caos. Não sei quando aconteceu esse papo, mas Ofeliano nos faz viajar por uma boa parte da história das HQs nacionais, com suas boas lembranças. Para quem curte quadrinho nacional, é uma leitura muito agradável. Aliás, deixe eu abrir um parenteses aqui: a área de entrevistas (o site mudou de endereço e todas as entrevistas ainda não estão publicadas) desse site tem um conteúdo muito bom, com quadrinistas excelentes dando o seu recado.
Uma das lembranças mais interessantes que Ofeliano conta na entrevista, foi a curiosa história do lançamento do Leão Negro, personagem selvagem e traiçoeiro criado por ele e Cynthia Carvalho, cuja estréia aconteceu de forma inusitada no Globinho, suplemento dominical de quadrinhos do jornal O Globo, em 1987. O anti-herói substituiu nada mais, nada menos, do que o amigo da vizinhança, o Homem-Aranha. Abaixo selecionei um trecho que da entrevista.
Assim falou Ofeliano:
“Ennio Torresan me avisou do Concurso de Tiras de O Globo. Fui pro McDonald’s por duas tardes e escrevi, entre sucos e sanduíches, as vinte tiras de Sarnento, o Cruzado do Rei, sátira ao Plano Cruzado, de José Sarney. Tirei o 5º Lugar. Eu e Cynthia estávamos numa pousada, cavalgando e curtindo quando pedi emprestado o jornal de um hóspede e lá estavam os premiados. Foi a glória para nossa vida em comum, recém-iniciada!
Só que eu não sabia como continuar a tirinha – não sou um cartunista nato – e daí surgiu a grande chance: colocar no lugar o Leão Negro! Preparamos dez tiras inéditas; foi aí que nasceu a concepção definitiva da tira. O editor de tiras de O Globo, Gilson Koatz, adorou e teve a coragem de, em 1987, retirar o Homem-Aranha e tascar o Othan. A grande ousadia era bancar uma tira brasileira de aventura seriada. Gilson é um entusiasta da HQ e pensava mesmo em montar a própria editora. Alguns leitores reclamaram, mas ele não se abalou. Logo, estes mesmos leitores escreveram dizendo estar gostando do Leão Negro. Choveram cartas de todo o Brasil, estavam gostando, foi uma adrenalina.
É um embate magnífico esse dos autores com o público – o público é muito lúdico, é selvagem, não precisa provar nada pra ninguém. Vai te destroçar ou te adotar incondicionalmente. É uma força da natureza e, por isso, professa uma verdade difícil de se contestar. É um juiz implacável. E o Leão Negro estourou de sucesso porque nós, autores, também o realizamos de modo lúdico e implacável. Conectamos com o público, mas foi instintivo, e isso só aconteceu também por causa dos roteiros da Cynthia, que escreve para se divertir, principalmente. Eu me submeti aos seus instintos, afinal não nasci ontem.
As aventuras do Othan não querem revolucionar a linguagem nem se destacar, estão aí só pela curtição; é seu grande segredo. Outra coisa importante que eu e Cynthia aprendemos logo no início dessa produção foi deixar o roteiro com o roteirista e o desenho com o desenhista, sem interferências. Inclusive Cynthia entrega tudo rafeado, o que já situa tudo devidamente.”
Bom, não é?
Noutra parte da entrevista, José Carlos pergunta sobre o paradeiro de alguns desenhistas, entre eles o do meu grande amigo Antonino Homobono, ao que Ofeliano responde demonstrando respeito e admiração: “Só posso contar do Antonino Homobono, inesquecível artista e personalidade marcante, falecido há poucos anos por grande desencanto existencial“, e continua a falar do grande artista, dando a entender que ele cometeu suicídio. Porém, quero aproveitar este espaço para esclarecer que o mestre Antonino não se suicidou. Ele realmente passava por um momento de grande turbulência em sua vida, mas o que aconteceu de fato é que ele morreu de uma grave doença que fez crescer o seu coração. Ele precisava de um transplante e, para não preocupar os amigos, não contou nada a ninguém. Sofreu sozinho, mas nunca transpareceu. Era um gigante em sua arte e em sua amizade. Doença estranha essa: para quê um coração maior, justo para o Antonino?! Ele já tinha um grande coração! Isso sempre me lembra desse trecho do poema de Mayakovsky:
“Desabotoado, o coração quase de fora, abria-me ao Sol e aos jatos d’água.
Entrai com vossas paixões! Galgai-me com vossos amores!
Doravante não sou mais dono de meu coração!
Nos demais – eu sei, qualquer um o sabe!
O coração tem domicílio no peito.
Comigo a anatomia ficou louca.
Sou todo coração – em todas as partes palpita.
Oh! Quantas são as primaveras em vinte anos acesas nesta fornalha!
Uma tal carga acumulada torna-se simplesmente insuportável.
Insuportável não para o versos de veras.”
Uma pessoa marcante como Antonino tinha que deixar lembraças emocionadas!
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PS: A imagem do Globinho que ilustra este texto não é da fase do Leão Negro, como se pode ver pela data (1980) mas serve para dar uma idéia de como era a publicação, praticamente com o mesmo visual, sete anos depois.